terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

Matéria dos Dias - Rodrigo Castilho - Casa da Cultura - Uberlândia-MG

 


A matéria dos dias

A escuridão é indispensável para apreciar a beleza Junichoró Tanizaki, Elogio da sombra

As pinturas de Rodrigo Castilho nos enganam pela aparente simplicidade com que se apresentam. Por vezes, as áreas de preto e cinza simulam um fragmento de paisagem purgado de todas as cores, no qual vislumbramos apenas um horizonte incerto, alguns signos e sinais gráficos encontrados na arquitetura urbana e construídos com densidade de matéria. Entretanto, dessas zonas de indeterminação emergem palpitações subterrâneas, que adquirem presença plástica e configuram o próprio espaço da pintura. Porque nessas telas, a sobriedade da composição e a economia de cores são pretextos para uma investigação imersiva a respeito da materialidade da própria pintura, uma vez que os vestígios gestuais e a fatura da tinta, são determinantes para a construção formal do plano pictórico.

Inquieto e introspectivo, esse conjunto de pinturas problematizam a visão do espectador, já que o artista elege a sombra e sua misteriosa irradiação, como elemento estruturante de seus trabalhos. A não-cor e seus valores instauram a ordenação do plano pictórico e operam a dinâmica entre formas e espaços, inclusive com a possibilidade de insinuar relevos na superfície das telas. Além disso, a espessura da tinta, trabalhada sobre o plano, revela também a densidade histórica de discussões acerca do corpo da pintura, que pautaram grande parte do debate artístico, sobretudo em meados do século XX. questões essas que, revisitadas pelo artista, sinalizam oportunamente a condição multifacetada da arte contemporânea, sensível às mais diversas práticas artísticas e aberta aos processos individuais de criação.

Submersos em sombras, nós enquanto espectadores, assistimos ao jogo prazeroso que o artista encampa com a pintura nesses pequenos trabalhos realizados com a gravidade de preto e cinzas. Entretanto, eles também nos seduzem por uma ambiguidade elementar: é a pintura em si ou o ato de pintar que motiva a concretização desses trabalhos? Essa insolente indagação nos devolve a certeza de que uma imagem não é uma única coisa, mas o atravessamento de tudo, uma constelação, no instante mesmo em que aparece. Nesse sentido, a matéria da pintura é também a urdidura do tempo, a matéria dos dias. Quando o tempo se metamorfoseia no espaço pictórico, as coisas perdem seu primeiro aspecto de coisas, para se colocarem lado a lado, convertidas numa mesma substância, nas vastas superfícies movediças da imagem.

Rodrigo Freitas, Uberlândia, 2023