terça-feira, 22 de julho de 2014

Calmon Barreto, um discreto e fugaz modernista.



Calmon Barreto de Sá Carvalho nasceu em Araxá/MG em 1909 e morreu na mesma cidade no ano de 1994. É uma das grandes figuras araxaenses (de importância não só artística como histórica) devido a sua consolidada atuação dentro do cenário das artes plásticas no Brasil que se iniciou já na adolescência ao trabalhar e estudar na Casa da Moeda no Rio de Janeiro e que continuou com uma exponencial carreira na Escola Nacional de Belas Artes onde foi diretor entre os anos de 1961 e 1964.
Boa parte de sua obra está no Museu Calmon Barreto em Araxá, um dos maiores museus brasileiros dedicados a um só artista, mas que infelizmente carece de um olhar mais cuidadoso do governo da cidade, uma vez que algumas obras estão há tempos expostas em um espaço museal improvisado, muitas delas necessitando urgentemente de uma restauração. O museu parece estar parado no tempo, com a mesma exposição há anos, sem mencionar o fato de não existir uma reserva técnica no espaço.
Dentro do museu vemos com destaque a produção mais conhecida do artista: aquela relacionada à história de Araxá que o artista produziu após seu retorno à cidade no final dos anos 1960 (quero aqui destacar a pesquisa de Gisele L. Faleiros da Rocha na qual analisa com destreza a importância histórica das pinturas de Araxá feitas por Calmon Barreto). Entretanto, 20 anos após sua morte, proponho o destaque de uma extensa produção do artista que não é muito conhecida. Estou falando de suas paisagens marinhas produzidas na cidade de Cabo Frio imediatamente anterior ao período que Calmon Barreto retorna à sua cidade natal.
Embora esse texto não pretende esgotar a discussão sobre essa fase do artista, é interessante perceber as peculiaridades desse período em relação a sua carreira artística, antecedida por uma fase de arte aplicada (marcada pela produção de moedas e ilustrações) e atuação acadêmica (como professor e diretor da Escola Nacional de Belas Artes) e a já mencionada fase posterior marcada pelas pinturas históricas.
Talvez já livre das ocupações da cidade grande e sob a influência da malemolência do oceano, as marinhas de Cabo Frio refletem um frescor, que pelo menos entre as obras expostas no museu, não é tão marcante nem na produção anterior nem na posterior do artista. Nessas obras, podemos perceber uma subjetividade discreta que Calmon Barreto parecia evitar. Menciono essa questão, pois segundo a pesquisadora Gisele Faleiros, o artista não aderiu ao modernismo por achá-lo um "abuso do subjetivismo". É nítido que essa série não tem as características estilísticas do modernismo, devido principalmente à formação acadêmica de Calmon e fato das obras terem sido produzidas décadas após o período modernista, mas as pinceladas mais soltas, as cores mais fortes e uma determinada mudança temática remetem a produções de grandes artistas que ajudaram a construir uma estética modernista, como por exemplo, Vincent van Gogh. "Marinha com barco" é um exemplo consistente.
Na pintura, podemos perceber um procedimento que foi entronizado pelo crítico norte-americano Clement Greenberg como a principal característica de uma pintura modernista. Para Greenberg, a pintura modernista diferencia da pintura clássica por ter em si mesma elementos técnicos que deixam claros que tal pintura é realmente uma pintura. Explicando melhor: o crítico afirmava que a pintura modernista não tenta mais simular a realidade, mas sim explorar as capacidades técnicas que a própria pintura oferece fazendo assim com que o ato de pintar não seja somente o meio de produção da obra, mas também seu próprio tema. Desse modo, pinceladas evidentes, cores saturadas e borrões passam a ser bem-vindos na prática pictórica, pois essas questões exaltam a planaridade da pintura em detrimento a uma simulação de um espaço tridimensional tão frequente em obras do período clássico da arte ocidental. Planaridade é o conceito fundamental de Greenberg para defender sua teoria sobre a pintura modernista. E embora não sejam completamente planas, as marinhas de Calmon Barreto trazem em si elementos dessa planaridade como as marcas de pincéis e as cores levemente saturadas.
Essa fase também se mostra peculiar devido não somente a essas questões técnicas escolhidas pelo artista, mas também por causa do próprio tema. Calmon foi professor da cadeira de Anatomia e Fisiologia Artística na Escola Nacional de Belas Artes e curiosamente as obras produzidas logo após sua aposentadoria não fazem praticamente nenhuma menção ao corpo humano. Das pinturas dessa série, são raras aquelas nas quais existe alguma figura humana retratada e quando isso ocorre tais figuras são ínfimas perante a natureza. Em alguns casos, vemos vestígios de construções humanas nas pinturas, como é o caso de "Marinha com barco". Tais construções, quando surgem, parecem estar sempre abandonadas, como se já fossem apropriadas pela natureza, como se fossem partes naturais dos cenários. As pinturas trazem certa melancolia e um clima ameno, típico do litoral. Nelas existe uma expressividade que se adere perfeitamente aos pequenos formatos escolhidos para as telas. A grandiosidade da natureza, que, por sinal, é um tema tipicamente acadêmico, aqui se apresenta de uma maneira mais contida, mais intimista, mais subjetiva, como um tranquilo passeio solitário por uma praia abandonada.
Tal ideia do passeio acaba nos remetendo a um importante movimento artístico modernista que ressoa nas pinturas marinhas de Calmon Barreto, o impressionismo. Mais uma vez, gostaria de afirmar que é uma aproximação também tímida, suave, pois ao analisarmos toda a série exposta no museu, vemos que os ideais impressionistas não são marcantes e definidores da série. Sabemos que uma das maiores preocupações impressionistas é com o comportamento da luz sobre as paisagens. Algumas pinturas de Calmon têm uma luz solar que banha de maneira bastante uniforme toda a extensão do espaço representado, em um procedimento comum na pintura acadêmica. Entretanto, algumas pinturas se destacam por representar nuanças proporcionadas pelas sombras existentes na paisagem. Um exemplo dessas nuanças é a pintura "Visita (sic) de marinha".
Na obra, podemos perceber o modo como as variações tonais vão se compondo, dando determinada dinâmica para a pintura. As nuanças tonais causadas pelas sombras e pela disposição dos planos (o plano do meio está mais iluminado do que os planos inferior e posterior) aproximam-se da estética impressionista, especialmente a dos primeiros impressionistas que lidavam muito com a ideia de uma fonte luminosa chapada com sombras bem definidas como a do sol do meio-dia (vide Edouard Manet). Dentro desse "espírito impressionista", outras duas obras se destacam no acervo do Museu Calmon Barreto. São elas, "Marinha chuvosa" e "Poente de Junho".
"Marinha chuvosa" se destaca pelo fato de ser uma paisagem com o céu fechado, sem o sol ardente que caracteriza praticamente toda a série exposta. Nela, cria-se uma ambientação inédita na produção do artista. O céu tem um novo tratamento pictórico que lida com a luz de outra maneira, é como se fosse um experimento que o artista propõe. Sem falarmos no caráter mais subjetivo que a noção que uma paisagem chuvosa pode transmitir. Entretanto, é importante ressaltar que somente o céu recebe esse tratamento. A paisagem no geral continua a receber o mesmo tratamento pictórico de toda a série, como se o chão desconsiderasse a fraca iluminação vinda do céu.
Mas é em "Poente de Junho" que essa ambientação impressionista fica mais evidente. Na pintura, Calmon se desliga de vários parâmetros acadêmicos para compor uma pintura que destoa de todo o conjunto, pela composição, pelas cores fortes e pelo rebaixamento da linha de horizonte, dando destaque assim a uma imponente luz solar que toma conta de todo o espaço pictórico. O rigor da luz e do contraste entre as cores mostram uma obra com vigor e experimentação ímpar.
Essas são, por enquanto, as primeiras observações que tenho a fazer sobre um artista que sempre esteve presente em meu imaginário. A princípio via com admiração a obra do artista, que foi um dos primeiros, se não o primeiro, com o qual tive um contato direto com suas obras. Mesmo antes do museu, era fácil ver pela cidade suas pinturas e esculturas. Quando comecei a estudar artes, o que eu chamei de anacronismo me incomodava. Via-o como um artista retrógrado que em plena experimentação conceitual dos anos 1960 e a consequente morte declarada da pintura, produziu uma série com fortes características não-clássicas. Hoje, especialmente ao analisar essa linda série de marinhas, percebo o quão complexo pode ser a manifestação artística. Desviar nosso olhar dos "grandes" artistas do Brasil, e nos deter naqueles considerados pela história como artistas "menores", é mais que tudo ampliar nossa visão de cultura, arte e até da própria história da arte. Não que as marinhas de Calmon Barreto sejam retrógradas ou anacrônicas, elas são atemporais. Não se remetem a tempo algum, não tem uma ligação profunda nem com os tumultuados anos 1960, nem com a extravagante vanguarda e muito menos com o rigor do neo-classicismo que marcou tanto a Escola Nacional de Belas Artes. Elas flutuam dentro da produção do artista. Tais paisagens marinhas ligam-se, assim como toda a produção de Calmon, ao tempo pessoal de um artista que soube se mostrar heterogêneo e complexo, ajudando a pacata cidade de Araxá a criar uma atmosfera cultural tão peculiar dentro do mítico interior mineiro.

Vitor Marcelino
Pesquisador do NUPPE









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