Calmon Barreto de Sá Carvalho nasceu em Araxá/MG
em 1909 e morreu na mesma cidade no ano de 1994. É uma das grandes figuras
araxaenses (de importância não só artística como histórica) devido a sua
consolidada atuação dentro do cenário das artes plásticas no Brasil que se
iniciou já na adolescência ao trabalhar e estudar na Casa da Moeda no Rio de
Janeiro e que continuou com uma exponencial carreira na Escola Nacional de
Belas Artes onde foi diretor entre os anos de 1961 e 1964.
Boa parte de sua obra está no Museu Calmon Barreto
em Araxá, um dos maiores museus brasileiros dedicados a um só artista, mas que
infelizmente carece de um olhar mais cuidadoso do governo da cidade, uma vez
que algumas obras estão há tempos expostas em um espaço museal improvisado,
muitas delas necessitando urgentemente de uma restauração. O museu parece estar
parado no tempo, com a mesma exposição há anos, sem mencionar o fato de não
existir uma reserva técnica no espaço.
Dentro do museu vemos com destaque a produção mais
conhecida do artista: aquela relacionada à história de Araxá que o artista
produziu após seu retorno à cidade no final dos anos 1960 (quero aqui destacar
a pesquisa de Gisele L. Faleiros da Rocha na qual analisa com destreza a
importância histórica das pinturas de Araxá feitas por Calmon Barreto).
Entretanto, 20 anos após sua morte, proponho o destaque de uma extensa produção
do artista que não é muito conhecida. Estou falando de suas paisagens marinhas
produzidas na cidade de Cabo Frio imediatamente anterior ao período que Calmon
Barreto retorna à sua cidade natal.
Embora esse texto não pretende esgotar a discussão
sobre essa fase do artista, é interessante perceber as peculiaridades desse
período em relação a sua carreira artística, antecedida por uma fase de arte
aplicada (marcada pela produção de moedas e ilustrações) e atuação acadêmica
(como professor e diretor da Escola Nacional de Belas Artes) e a já mencionada
fase posterior marcada pelas pinturas históricas.
Talvez já livre das ocupações da cidade grande e
sob a influência da malemolência do oceano, as marinhas de Cabo Frio refletem
um frescor, que pelo menos entre as obras expostas no museu, não é tão marcante
nem na produção anterior nem na posterior do artista. Nessas obras, podemos
perceber uma subjetividade discreta que Calmon Barreto parecia evitar. Menciono
essa questão, pois segundo a pesquisadora Gisele Faleiros, o artista não aderiu
ao modernismo por achá-lo um "abuso do subjetivismo". É nítido que
essa série não tem as características estilísticas do modernismo, devido
principalmente à formação acadêmica de Calmon e fato das obras terem sido
produzidas décadas após o período modernista, mas as pinceladas mais soltas, as
cores mais fortes e uma determinada mudança temática remetem a produções de
grandes artistas que ajudaram a construir uma estética modernista, como por exemplo,
Vincent van Gogh. "Marinha com barco" é um exemplo consistente.
Na pintura, podemos perceber um procedimento que
foi entronizado pelo crítico norte-americano Clement Greenberg como a principal
característica de uma pintura modernista. Para Greenberg, a pintura modernista
diferencia da pintura clássica por ter em si mesma elementos técnicos que
deixam claros que tal pintura é realmente uma pintura. Explicando melhor: o
crítico afirmava que a pintura modernista não tenta mais simular a realidade,
mas sim explorar as capacidades técnicas que a própria pintura oferece fazendo
assim com que o ato de pintar não seja somente o meio de produção da obra, mas
também seu próprio tema. Desse modo, pinceladas evidentes, cores saturadas e
borrões passam a ser bem-vindos na prática pictórica, pois essas questões
exaltam a planaridade da pintura em detrimento a uma simulação de um espaço
tridimensional tão frequente em obras do período clássico da arte ocidental.
Planaridade é o conceito fundamental de Greenberg para defender sua teoria
sobre a pintura modernista. E embora não sejam completamente planas, as
marinhas de Calmon Barreto trazem em si elementos dessa planaridade como as
marcas de pincéis e as cores levemente saturadas.
Essa fase também se mostra peculiar devido não
somente a essas questões técnicas escolhidas pelo artista, mas também por causa
do próprio tema. Calmon foi professor da cadeira de Anatomia e Fisiologia
Artística na Escola Nacional de Belas Artes e curiosamente as obras produzidas
logo após sua aposentadoria não fazem praticamente nenhuma menção ao corpo
humano. Das pinturas dessa série, são raras aquelas nas quais existe alguma
figura humana retratada e quando isso ocorre tais figuras são ínfimas perante a
natureza. Em alguns casos, vemos vestígios de construções humanas nas pinturas,
como é o caso de "Marinha com barco". Tais construções, quando
surgem, parecem estar sempre abandonadas, como se já fossem apropriadas pela
natureza, como se fossem partes naturais dos cenários. As pinturas trazem certa
melancolia e um clima ameno, típico do litoral. Nelas existe uma expressividade
que se adere perfeitamente aos pequenos formatos escolhidos para as telas. A
grandiosidade da natureza, que, por sinal, é um tema tipicamente acadêmico,
aqui se apresenta de uma maneira mais contida, mais intimista, mais subjetiva,
como um tranquilo passeio solitário por uma praia abandonada.
Tal ideia do passeio acaba nos remetendo a um
importante movimento artístico modernista que ressoa nas pinturas marinhas de
Calmon Barreto, o impressionismo. Mais uma vez, gostaria de afirmar que é uma
aproximação também tímida, suave, pois ao analisarmos toda a série exposta no
museu, vemos que os ideais impressionistas não são marcantes e definidores da
série. Sabemos que uma das maiores preocupações impressionistas é com o
comportamento da luz sobre as paisagens. Algumas pinturas de Calmon têm uma luz
solar que banha de maneira bastante uniforme toda a extensão do espaço
representado, em um procedimento comum na pintura acadêmica. Entretanto,
algumas pinturas se destacam por representar nuanças proporcionadas pelas
sombras existentes na paisagem. Um exemplo dessas nuanças é a pintura
"Visita (sic) de marinha".
Na obra, podemos perceber o modo como as variações
tonais vão se compondo, dando determinada dinâmica para a pintura. As nuanças
tonais causadas pelas sombras e pela disposição dos planos (o plano do meio
está mais iluminado do que os planos inferior e posterior) aproximam-se da
estética impressionista, especialmente a dos primeiros impressionistas que
lidavam muito com a ideia de uma fonte luminosa chapada com sombras bem
definidas como a do sol do meio-dia (vide Edouard Manet). Dentro desse
"espírito impressionista", outras duas obras se destacam no acervo do
Museu Calmon Barreto. São elas, "Marinha chuvosa" e "Poente de
Junho".
"Marinha chuvosa" se destaca pelo fato
de ser uma paisagem com o céu fechado, sem o sol ardente que caracteriza
praticamente toda a série exposta. Nela, cria-se uma ambientação inédita na
produção do artista. O céu tem um novo tratamento pictórico que lida com a luz
de outra maneira, é como se fosse um experimento que o artista propõe. Sem falarmos
no caráter mais subjetivo que a noção que uma paisagem chuvosa pode transmitir.
Entretanto, é importante ressaltar que somente o céu recebe esse tratamento. A
paisagem no geral continua a receber o mesmo tratamento pictórico de toda a
série, como se o chão desconsiderasse a fraca iluminação vinda do céu.
Mas é em "Poente de Junho" que essa
ambientação impressionista fica mais evidente. Na pintura, Calmon se desliga de
vários parâmetros acadêmicos para compor uma pintura que destoa de todo o
conjunto, pela composição, pelas cores fortes e pelo rebaixamento da linha de
horizonte, dando destaque assim a uma imponente luz solar que toma conta de
todo o espaço pictórico. O rigor da luz e do contraste entre as cores mostram
uma obra com vigor e experimentação ímpar.
Essas são, por enquanto, as primeiras observações
que tenho a fazer sobre um artista que sempre esteve presente em meu
imaginário. A princípio via com admiração a obra do artista, que foi um dos
primeiros, se não o primeiro, com o qual tive um contato direto com suas obras.
Mesmo antes do museu, era fácil ver pela cidade suas pinturas e esculturas.
Quando comecei a estudar artes, o que eu chamei de anacronismo me incomodava.
Via-o como um artista retrógrado que em plena experimentação conceitual dos
anos 1960 e a consequente morte declarada da pintura, produziu uma série com
fortes características não-clássicas. Hoje, especialmente ao analisar essa
linda série de marinhas, percebo o quão complexo pode ser a manifestação
artística. Desviar nosso olhar dos "grandes" artistas do Brasil, e
nos deter naqueles considerados pela história como artistas "menores",
é mais que tudo ampliar nossa visão de cultura, arte e até da própria história
da arte. Não que as marinhas de Calmon Barreto sejam retrógradas ou anacrônicas,
elas são atemporais. Não se remetem a tempo algum, não tem uma ligação profunda
nem com os tumultuados anos 1960, nem com a extravagante vanguarda e muito
menos com o rigor do neo-classicismo que marcou tanto a Escola Nacional de
Belas Artes. Elas flutuam dentro da produção do artista. Tais paisagens
marinhas ligam-se, assim como toda a produção de Calmon, ao tempo pessoal de um
artista que soube se mostrar heterogêneo e complexo, ajudando a pacata cidade
de Araxá a criar uma atmosfera cultural tão peculiar dentro do mítico interior
mineiro.
Vitor Marcelino
Pesquisador do NUPPE
Nenhum comentário:
Postar um comentário