Este mês as postagens do blog serão dedicadas ao tema “A
religiosidade como referencialidade criativa”, pelo que proponho uma série de
curtas visitas a autores e obras paradigmáticos deste contexto.
Para inaugurar esta série, gostaria de dar a conhecer a obra
de Bodil Kaalund, que ilustra bem a vertente mais tradicional da arte
contemporânea sob a égide da religião.
Arte & Religião –
breve nota introdutória
A articulação entre a esfera artística e a religiosa remonta
à própria origem destas duas formas expressivas de relação entre o homem e a
sua condição existencial no mundo.
O culto dos mortos durante a pré-história comprova a
imemorial simbiose entre arte e religião. Para as inumações, era uitilizado
ocre avermelhado a par de arranjos com elementos naturais (flores, conchas,
etc) numa prática que terá sido a precussora das mais sofisticadas múmias e
câmaras funerárias, que diferentes culturas mais tarde adoptaram. Quase numa mise en abîme, as câmaras funerárias
foram-se tornando verdadeiras obras de arte contendo outras obras de arte.
A prática religiosa, mesmo a que não estava directamente
ligada ao culto dos mortos, andou sempre de mãos dadas com a arte, culminando
no exemplo das grandes catedrais da Idade Média. No Renascimento, a cisão entre
objeto religioso e objeto artístico começou a ganhar forma, sobretudo graças a
fatores como a substituição do paradigma teocêntrico, o humanismo e a ascensão
de uma burguesia ávida de reconhecimento social que passou a recorrer à arte
como forma de legitimação do seu estatuto. Todavia, a autonomia que
contemporaneamente podemos reconhecer entre objetos artísticos e objetos
religiosos não é tão linear como à primeira vista poderá parecer, nem gora a
possibilidade de variados tipos de hibridismo entre ambas as expressões.
A esfera dos objetos artísticos pode coincidir coetaneamente
com a dos objetos religiosos, ainda que na maioria dos casos, a relação entre
ambos seja baseada numa transferência etológica posterior, por exemplo, pela
elevação de um objeto religioso à categoria artística, mantendo-se como
categoria da primeira instância (religiosa) apenas a memória histórica da sua
utilização ritual e ampliando ao nível da segunda instância (artística) a
valorização formal em termos de qualidade decorativa para outros níveis de
apreciação estética.
Muitos são os artistas contemporâneos que, independentemente
de professarem ou não uma crença, têm feito incursões no âmbito da arte
religiosa, seja pela criação de obras especificamente votadas aos espaços ou
aos cultos litúrgicos, seja pela exploração pontual de temáticas ligadas a essa
esfera, sem qualquer propósito de integração no espaço sacro.
A primeira artista da série que proponho dar a conhecer,
insere-se na primeira categoria.
1 1.
BODIL
KAALUND
Bodil Kaalund é uma das artistas escandinavas mais conotadas
com o desenvolvimento criativo em torno da temática religiosa. Ela nasceu em
1930 na cidade dinamarquesa de Silkeborg. Seu pai, Martin Kaalund-Jørgensen
(1889-1952) era um reputado pintor, cuja fama foi construída através dos
retratos das mais importantes personalidades políticas da Dinamarca, no início
do séc. XX.
Desde cedo, Bodil privou com inúmeros artistas que frequentavam a
casa de seu pai, em Kongens Lyngby (10 km a Norte de Copenhaga), onde ainda
hoje habita e tem o seu ateliê. A sua infância foi marcada pelas frequentes visitas
às igrejas onde o seu pai fazia trabalhos de restauro de frescos medievais.
A grande entrada no mundo da arte como pintora ocorreu por
volta dos 16 anos, após uma viagem à Noruega lhe ter dado a conhecer a obra de Edvard
Munch. Percebendo o seu entusiasmo, o pai oferece-lhe a sua primeira caixa de
óleos. Durante esse período começou a pintar motivos inspirados pelo Novo
Testamento. Não há porém registo dessas suas pinturas, uma vez que ela as
destruía quando ficavam prontas. Bodil sentia que a sua obra religiosa não
tinha lugar no panorama artístico vigente, optando por temas profanos. Só
voltaria a retomar a pintura inspirada em motivos religiosos 25 anos depois.
Bodil expôs
pela primeira vez na Kunstnernes Efterårsudstilling em 1948. Tratava-se de uma
exposição coletiva, onde apresentou duas paisagens de Røsnæs, onde os seus pais
tinham uma casa de férias. Dois anos mais tarde ingressa na Kongelige Danske
Kunstakademi (Real Academia Dinamarquesa de Belas-Artes) em Copenhaga, onde
estuda até 1954. No primeiro ano da sua formação, casa-se com o pintor e
designer Nikolaj Nielsen, tendo-se divorciado em 1976. Entre os seus mestres,
contam-se Holger J. Jensen, Kræsten Iversen e Elof Risebye, com quem aprendeu a
arte do fresco. Os anos na academia foram marcados pela procura de um estilo
pessoal capaz de harmonizar figurativismo e abstração, que todavia só iria se
consolidar no final da década de 50, quando se familiariza com as paisagens da
Gronelândia e do Norte da Noruega. A luz do ártico e a simplicidade da
natureza setentrional passaram, desde então, a marcar a paleta de Bodil.
Na década de 70, essa mesma relação com a natureza leva a
pintora a explorar novamente a temática religiosa, pela qual se interessara
durante a adolescência. Reaproximando-se do ambiente eclesiástico, assume vários
projetos artísticos integrados na recuperação e remodelação de igrejas, no seu
país natal. Conta atualmente com intervenções artísticas em 28 igrejas.
A sua criatividade de inspiração religiosa não se esgota nas pinturas, passando
também pelo desenho dos paramentos eclesiásticos (são famosas as suas casulas
para o Bispo de Aalborg e para o Bispo de Copenhaga) e pelas 159 ilustrações que
executou entre 1984 e 1991, para a tradução dinamarquesa da Bíblia, publicada
em 1992.
Na sequência deste trabalho de ilustração e da intervenção
realizada pela artista na Igreja de Lemvig, foi fundado um museu de arte sacra
nessa mesma cidade, que alberga uma coleção de obras de Bodil (www.mfrk.dk/).
Contrariamente a muitos outros artistas contemporâneos que
exploram a temática religiosa através de imagens simbólicas, Bodil apostou numa
estratégia narrativa, em sintonia com o compasso bíblico. Tal narratividade é todavia
acrescida por um certo expressionismo que herdou de Munch e que incute uma
profundidade psicológica às suas obras. Para a artista, tanto o cristianismo,
como a arte são experiências que têm de radicar no nosso presente e têm de ser
vividas em termos pessoais, para que não sejam meras histórias ou ilustrações
de tempos idos, com conteúdos cristalizados e, por isso mesmo, vazados. A
narratividade da sua obra transmite esta convicção. Em termos formais, é também
possível reconhecer nas pinturas de grande formato um certo cromatismo e uma certa ondulação nos motivos da
composição, que ora remetem para o Maneirismo, ora remetem para o Barroco.
Ana Rita Ferreira
NUPPE/CFUL
GARFF,
Jean (dir.), Kaalunds kirker, Copenhague, Borgen, 2000.
OLSEN, Nina
Dahlmann, «Bodil Kaalund (1930 -)», in Dansk
Biografisk Leksikon, 1992. http://www.kvinfo.dk/side/170/bio/555/
PLATHE,
Sissel F., «Bodil Kaalund», in Weilbachs Kunstnerleksikon, 1994 https://www.kulturarv.dk/kid/VisWeilbachRefresh.do?kunstnerId=2120&wsektion=biografi
Bodil Kaalund no seu ateliê |
Algumas páginas da Bíblia ilustrada por Bodil Kaalund |
Herren lovprises, aquarela |
Marias bebudelse, aquarela |
Englen vælter stenen fra graven, aquarela |
Jakobs drøm, aquarela |
Pintura mural na ábside da Igreja de Herlev, 1995-6 |
Retábulo do altar da Igreja de Solberg, 1984 |
Sem título, serigrafia |
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