A
proposta de hoje é uma controversa obra de cariz religioso da autoria de Tracy
Emin.
Tracy
Emin, For you, néon rosa, 6 m de comprimento, 2008, Catedral de
Liverpool – Inglaterra.
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A obra chama-se For
you e consiste numa frase em néon rosa, com a caligrafia da artista, que
diz o seguinte: "I Felt You And I Know You Loved Me".
A artista quase dispensa apresentação. Ela é um dos nomes
mais sonantes entre os Young British Artists (YBAs) e foi precisamente o
caráter irreverente e provocatório dos seus trabalhos que mais contribuiu para
a sua fama. Na memória de muitos está ainda a polémica nomeação para o Turner
Prize em 1999, com a instalação My Bed, na qual Emin expôs a sua própria cama em total desalinho e ladeada
por um tapete salpicado de beatas de cigarro, roupa interior usada, uma
garrafa, preservativos, papéis amarrotados e outros detritos de uma vivência
desregrada. Os lençóis da cama apresentavam manchas de secreções corporais.
A obra despertou a
revolta de muitos e a simpatia de outros. Para os seus defensores, My bed
revelava uma faceta mais espiritual da beleza artística, fundada na sinceridade
do seu realismo angustiado. Emin afirmara que o estado desarrumado da cama era
precisamente o mesmo quando dela se levantou após um doloroso período de
depressão motivado pelo fracasso de uma relação amorosa.
Tracy
Emin, My bed, instalação, 1998
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My bed pertencia
à coleção de arte do milionário Charles Saatchi e foi leiloada este ano, no
passado mês de Julho, pela Christies de Londres, tendo atingido o valor de 2.2
milhões de libras. (www.telegraph.co.uk/culture/art/10939458/Tracey-Emins-bed-sells-for-2.2-million.html)
Esta instalação não
deixa de ser interessante para contextualizarmos For you, uma vez que é exemplificativa
do caráter paradoxal da obra de Emin: por um lado, a inegável e egotista
irreverência, por outro lado, a crua franqueza e uma certa humildade na
apresentação da fragilidade que carateriza a condição humana. A leitura que se
faz do conjunto da obra de um artista não pode deixar de contextualizar a
singularidade de cada uma das suas propostas criativas. Em termos formais e
técnicos, For you filia-se mais concretamente no conjunto de peças que a
artista vem desenvolvendo desde 1995, todas elas com curtas frases desenhadas na
caligrafia despretensiosa de Emin, através de tubos de néon colorido. A luz e o
teor de algumas mensagens supostamente revelariam o lado espiritual da artista.
(www.theartnewspaper.com/articles/Neon-sculptures-reveal-Emins-spiritual-side/31237)
Mas em muitos dos trabalhos em néon, essa espiritualidade está longe de ser
evidente.
She Lay Down Deep Beneath the Sea, Neon azul marinho, 90.6 x 148.8
cm, 2012
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I promise to love you, néon azul marinho e néon rosa
coral, 145.8 x 143 cm, edição de 3, 2010
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People Like You Need to Fuck
People Like Me,
néon azul e rosa, 114.3 x 182.9 x 6.4 cm, 2002
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Some Crazy Fucked Up Dog Like Hell That's How it Feels to Live without Love, néon vermelho, 46.14 x 90.65 inches, edição de 3, 2009 |
For you foi
especificamente criada para a Catedral de Liverpool, após o Capítulo lhe ter
encomendado uma obra que constituiria a contribuição da Catedral no âmbito da nomeação
da cidade como Capital Europeia da Cultura 2008. Nesse ano, a Catedral foi
premiada com o Liverpool Chamber of Commerce Arts Award por acolher a peça de Emin, tendo ela
própria recebido, no ano seguinte, o prémio ACE (Art and Christianity Enquiry)
para obras de arte em contexto religioso. (http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/england/merseyside/8371003.stm)
A obra de Emin foi
instalada entre o pórtico oeste da Catedral de Liverpool e o imponente vitral
Benedicite da autoria de Carl Edwards (1914–1985), num jogo de contrastes em
relação à luminosidade (sendo que a luz provinda do vitral é natural e a do néon
artificial); à cor (azul do vitral face ao rosa do néon) e aos 3 tempos
históricos (o do pórtico, o do vitral e o da obra de Emim). Tais contrastes refletem
também a possibilidade de coexistência entre diferentes modos de viver e de expressar
a espiritualidade. Em 2012, uma nova versão de For you esteve
também em exposição na Igreja de Nossa Senhora (Vor Frue Kirke) em Copenhaga.
For you,
versão néon azul, 2012 (Vor Frue Kirke - Dinamarca)
Foto: Erling Lykke
Jeppesen
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Emin afirmou que
pretendia apelar à contemplação e transmitir com a peça uma mensagem de amor.[1]
Não há dúvida de que as igrejas são espaços com este propósito e que, nesse
sentido, a peça tem real pertinência em tal contexto. Cabe todavia inquirir se
uma obra feita por uma artista que se notabilizou por uma certa agressividade
na forma como expõe a sua criatividade, sempre chocando grande parte do
público, não será sobretudo interpretada em conformidade com esse ambiente de
irreverência... Será que o espaço religioso “purifica” os modos de contemplação
da obra? Será que ela funcionaria da mesma maneira num tradicional espaço
expositivo? É preciso levar em conta que a obra é uma instalação site
specific o que significa que foi criada para influenciar o seu espaço e
para se deixar “contagiar” por ele. Mas será meramente essa intencionalidade o
fator distintivo capaz de particularizar este néon relativamente aos muitos
outros que Emin tem vindo a criar? Será possível abstrairmo-nos da natureza
salaz de muitas outras obras da artista, ao contemplarmos esta? Se o espaço
influencia a obra, não a influenciará também o contexto criativo que está na
sua origem?
Mesmo que assim seja – e estou certa de que assim é – não me parece desadequado que uma obra de tal natureza habite o espaço sagrado. A igreja tem de manter a ligação ao seu tempo tão viva quanto a relação que mantém com o passado testamentário e isso passa por integrar obras contemporâneas no seu espaço. O fato de a obra despertar controvérsia ou o fato de ter sido criada por alguém que vive a espiritualidade de uma forma não convencional, talvez demasiado paralela a uma mundaneidade bastante criticável aos olhos da Igreja, não gora nesta obra a função que também estava presente nas pinturas do passado propositadamente feitas para o espaço sacro, tão aptas a relembrar os fiéis das suas fraquezas humanas.
Mesmo que assim seja – e estou certa de que assim é – não me parece desadequado que uma obra de tal natureza habite o espaço sagrado. A igreja tem de manter a ligação ao seu tempo tão viva quanto a relação que mantém com o passado testamentário e isso passa por integrar obras contemporâneas no seu espaço. O fato de a obra despertar controvérsia ou o fato de ter sido criada por alguém que vive a espiritualidade de uma forma não convencional, talvez demasiado paralela a uma mundaneidade bastante criticável aos olhos da Igreja, não gora nesta obra a função que também estava presente nas pinturas do passado propositadamente feitas para o espaço sacro, tão aptas a relembrar os fiéis das suas fraquezas humanas.
Pictura est laicorum litteratura, mas em tempos de maior alfabetismo não há
por que insistir desalmadamente na figuração – a mensagem escrita de For you
pode ser mais profunda do que aquilo que à primeira vista aparenta,
induzindo-nos ao questionamento das nossas limitações, contradições, capacidade
de aceitação e de amor. Nada disto é alheio à Igreja, nada disto é alheio
ao conjunto da obra de Tracy Emin.
Ana Rita Ferreira
NUPPE/CFUL
[1]
“I thought it would be nice for people to sit in the cathedral and have a
moment to contemplate the feelings of love,” she says. “It’s something which we
just don't have enough time to think about. (...) All my neons are very
open-ended. Unlike a lot of my artwork where I force it on you, it’s up to you
how you interpret this. It depends how you want to be touched by something.
(...) I’m quite a spiritual person and I believe in the feeling. There’s
nothing cynical about it, it’s just one of my thoughts.” Tracy Emin em
entrevista a Catherine Jones, publicada em Setembro de 2008 no Liverpool Echo: http://www.liverpoolecho.co.uk/news/liverpool-news/message-love-liverpool-tracey-emin-3473408.
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