sexta-feira, 8 de agosto de 2014

2. FOR YOU - Tracy Emin em contexto religioso



A proposta de hoje é uma controversa obra de cariz religioso da autoria de Tracy Emin.

Tracy Emin, For you, néon rosa, 6 m de comprimento, 2008, Catedral de Liverpool – Inglaterra.

A obra chama-se For you e consiste numa frase em néon rosa, com a caligrafia da artista, que diz o seguinte: "I Felt You And I Know You Loved Me".
A artista quase dispensa apresentação. Ela é um dos nomes mais sonantes entre os Young British Artists (YBAs) e foi precisamente o caráter irreverente e provocatório dos seus trabalhos que mais contribuiu para a sua fama. Na memória de muitos está ainda a polémica nomeação para o Turner Prize em 1999, com a instalação My Bed, na qual Emin expôs a sua própria cama em total desalinho e ladeada por um tapete salpicado de beatas de cigarro, roupa interior usada, uma garrafa, preservativos, papéis amarrotados e outros detritos de uma vivência desregrada. Os lençóis da cama apresentavam manchas de secreções corporais. 
A obra despertou a revolta de muitos e a simpatia de outros. Para os seus defensores, My bed revelava uma faceta mais espiritual da beleza artística, fundada na sinceridade do seu realismo angustiado. Emin afirmara que o estado desarrumado da cama era precisamente o mesmo quando dela se levantou após um doloroso período de depressão motivado pelo fracasso de uma relação amorosa.

Tracy Emin, My bed, instalação, 1998

My bed pertencia à coleção de arte do milionário Charles Saatchi e foi leiloada este ano, no passado mês de Julho, pela Christies de Londres, tendo atingido o valor de 2.2 milhões de libras. (www.telegraph.co.uk/culture/art/10939458/Tracey-Emins-bed-sells-for-2.2-million.html)
Esta instalação não deixa de ser interessante para contextualizarmos For you, uma vez que é exemplificativa do caráter paradoxal da obra de Emin: por um lado, a inegável e egotista irreverência, por outro lado, a crua franqueza e uma certa humildade na apresentação da fragilidade que carateriza a condição humana. A leitura que se faz do conjunto da obra de um artista não pode deixar de contextualizar a singularidade de cada uma das suas propostas criativas. Em termos formais e técnicos, For you filia-se mais concretamente no conjunto de peças que a artista vem desenvolvendo desde 1995, todas elas com curtas frases desenhadas na caligrafia despretensiosa de Emin, através de tubos de néon colorido. A luz e o teor de algumas mensagens supostamente revelariam o lado espiritual da artista. (www.theartnewspaper.com/articles/Neon-sculptures-reveal-Emins-spiritual-side/31237) Mas em muitos dos trabalhos em néon, essa espiritualidade está longe de ser evidente.

She Lay Down Deep Beneath the Sea, Neon azul marinho, 90.6 x 148.8 cm, 2012


I promise to love you, néon azul marinho e néon rosa coral, 145.8 x 143 cm, edição de 3, 2010


People Like You Need to Fuck People Like Me, néon azul e rosa, 114.3 x 182.9 x 6.4 cm, 2002


Some Crazy Fucked Up Dog Like Hell That's How it Feels to Live without Love, néon vermelho, 46.14 x 90.65 inches, edição de 3, 2009


For you foi especificamente criada para a Catedral de Liverpool, após o Capítulo lhe ter encomendado uma obra que constituiria a contribuição da Catedral no âmbito da nomeação da cidade como Capital Europeia da Cultura 2008. Nesse ano, a Catedral foi premiada com o Liverpool Chamber of Commerce Arts Award por acolher a peça de Emin, tendo ela própria recebido, no ano seguinte, o prémio ACE (Art and Christianity Enquiry) para obras de arte em contexto religioso. (http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/england/merseyside/8371003.stm)
A obra de Emin foi instalada entre o pórtico oeste da Catedral de Liverpool e o imponente vitral Benedicite da autoria de Carl Edwards (1914–1985), num jogo de contrastes em relação à luminosidade (sendo que a luz provinda do vitral é natural e a do néon artificial); à cor (azul do vitral face ao rosa do néon) e aos 3 tempos históricos (o do pórtico, o do vitral e o da obra de Emim). Tais contrastes refletem também a possibilidade de coexistência entre diferentes modos de viver e de expressar a espiritualidade. Em 2012, uma nova versão de For you esteve também em exposição na Igreja de Nossa Senhora (Vor Frue Kirke) em Copenhaga.

For you, versão néon azul, 2012 (Vor Frue Kirke - Dinamarca)
Foto: Erling Lykke Jeppesen


Emin afirmou que pretendia apelar à contemplação e transmitir com a peça uma mensagem de amor.[1] Não há dúvida de que as igrejas são espaços com este propósito e que, nesse sentido, a peça tem real pertinência em tal contexto. Cabe todavia inquirir se uma obra feita por uma artista que se notabilizou por uma certa agressividade na forma como expõe a sua criatividade, sempre chocando grande parte do público, não será sobretudo interpretada em conformidade com esse ambiente de irreverência... Será que o espaço religioso “purifica” os modos de contemplação da obra? Será que ela funcionaria da mesma maneira num tradicional espaço expositivo? É preciso levar em conta que a obra é uma instalação site specific o que significa que foi criada para influenciar o seu espaço e para se deixar “contagiar” por ele. Mas será meramente essa intencionalidade o fator distintivo capaz de particularizar este néon relativamente aos muitos outros que Emin tem vindo a criar? Será possível abstrairmo-nos da natureza salaz de muitas outras obras da artista, ao contemplarmos esta? Se o espaço influencia a obra, não a influenciará também o contexto criativo que está na sua origem? 

Mesmo que assim seja – e estou certa de que assim é – não me parece desadequado que uma obra de tal natureza habite o espaço sagrado. A igreja tem de manter a ligação ao seu tempo tão viva quanto a relação que mantém com o passado testamentário e isso passa por integrar obras contemporâneas no seu espaço. O fato de a obra despertar controvérsia ou o fato de ter sido criada por alguém que vive a espiritualidade de uma forma não convencional, talvez demasiado paralela a uma mundaneidade bastante criticável aos olhos da Igreja, não gora nesta obra a função que também estava presente nas pinturas do passado propositadamente feitas para o espaço sacro, tão aptas a relembrar os fiéis das suas fraquezas humanas. 
Pictura est laicorum litteratura, mas em tempos de maior alfabetismo não há por que insistir desalmadamente na figuração – a mensagem escrita de For you pode ser mais profunda do que aquilo que à primeira vista aparenta, induzindo-nos ao questionamento das nossas limitações, contradições, capacidade de aceitação e de amor. Nada disto é alheio à Igreja, nada disto é alheio ao conjunto da obra de Tracy Emin.

Ana Rita Ferreira
NUPPE/CFUL


[1] “I thought it would be nice for people to sit in the cathedral and have a moment to contemplate the feelings of love,” she says. “It’s something which we just don't have enough time to think about. (...) All my neons are very open-ended. Unlike a lot of my artwork where I force it on you, it’s up to you how you interpret this. It depends how you want to be touched by something. (...) I’m quite a spiritual person and I believe in the feeling. There’s nothing cynical about it, it’s just one of my thoughts.” Tracy Emin em entrevista a Catherine Jones, publicada em Setembro de 2008 no Liverpool Echo: http://www.liverpoolecho.co.uk/news/liverpool-news/message-love-liverpool-tracey-emin-3473408.

Nenhum comentário:

Postar um comentário