São muitos os artistas contemporâneos que têm os ex-votos
como referência criativa. Estes objetos devocionais inspiram diferentes modos
de apropriação por parte dos artistas, não apenas em relação ao aspeto formal,
mas também ao ideário que lhes subjaz e às motivações pessoais e coletivas que
estão na sua origem.
Ex-voto italiano de 1924. (P.G.R. é a abreviatura de Per grazie ricevute, que significa "Pela graça recebida") |
Os ex-votos são ofertas votivas a um santo ou divindade, que
tanto podem acompanhar um pedido de feliz desenlace, como constituir já o
pagamento da promessa relacionada com tal pedido. A designação ex-voto vem
precisamente da expressão latina ex voto suscepto, que significa “pela promessa realizada” ou “em resultado da promessa
realizada”. Como na maioria dos casos o que motiva o pedido é uma
situação de doença, os ex-votos representam habitualmente as partes do corpo
afetadas. Podem também dizer respeito ao bom sucesso de viagens longas, pelo
que é vulgar encontrar ex-votos com temas marinhos. Outras motivações são a
proteção das colheitas, a proteção da gravidez, a cura de alguma dependência, problemas
sexuais, o sucesso de determinado projeto ou o encontro de alguém ou alguma
coisa que tenha desaparecido. Sair ileso de algum acidente, catástrofe ou
acontecimento violento constitui também motivo para os ex-votos.
Ex-votos na Saint Roch Chapel em New Orleans, Louisiana.
(Com próteses)
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Exemplos de ex-votos anatómicos
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Muitos deste objetos são esculturas antropomórficas parciais em cera,
argila ou gesso, outros são pinturas e desenhos naïfs, de pendor narrativo, com
uma legenda explicando o pedido e/ou a sua concessão, à qual é atribuída uma
proveniência miraculosa. Em certas regiões, são também comuns os ex-votos constituídos
por gravuras em folha-de-flandres, emolduradas sobre fundo vermelho, ou mesmo jóias em
ouro, prata e outros objetos do quotidiano como peças de roupa, instrumentos de
trabalho, aparelhos ortopédicos, partes de bicicletas, peças de automóveis, mas
também mechas de cabelo ou fotos. Embora seja uma prática bastante associada ao
Sul da Europa, também é comum encontrar a tradição dos ex-votos no Brasil, México,
Estados Unidos da América, Alemanha ou Suécia, entre outros.
Vários ex-votos
em lata na Cappella della Visitazione da Igreja de Gesu Nuovo em Nápoles
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A
tradição votiva era já prática comum entre civilizações tão antigas e distintas
como a egípcia, a helénica ou a maia, porém, na sua especificidade, os ex-votos
têm origem na Itália renascentista. A classe burgesa em ascensão
comissionava este tipo de pinturas, cuja qualidade artística em nada ficava
atrás dos retratos então pintados destes mecenas. A rápida difusão geográfica e
a democratização da prática fez com que os ex-votos passassem de objeto de arte
a artesanato religioso. Sem o poder económico dos grandes mecenas, o povo fazia
os seus próprios ex-votos ou encomendava a artesãos sem a qualidade técnica dos
bons pintores renascentistas.
Ex-voto com temática marinha do final do séc. XV, exposto na Igreja de S. Pedro em Zumaia (Espanha). |
Ex-voto com temática marinha na Igreja de Santa Maria del Soccorso, Forio (Ilha de Ischia – Itália), 1864 |
Ex-voto em forma de barco na Igreja de Santa Maria del Soccorso, Forio (Ilha de Ischia – Itália) |
A extraordinária riqueza do vocabulário figurativo, o ritmo
serial com que são apresentados e o tipo de ocorrência psicoafetiva que os motiva fazem
dos ex-votos um objeto de grande atratividade visual, para além do interesse
histórico e etnográfico. Com efeito, não constituem apenas um modo de comunicação
entre a pessoa que faz o pedido e a divindade à qual é destinado, mas têm também
uma dimensão pública, funcionando como louvor comunitariamente manifesto e como
exemplo para os demais fiéis que frequentam o santuário onde estão expostos. Alguns
ex-votos eram também deixados em cemitérios, intercessões de vias, ou
cruzeiros. O fascínio que despertam, levou a que vários artistas os
colecionassem pelo seu valor histórico, cultural e pelo potencial criativo: a
coleção de Frida Kahlo e Diego Rivera é famosa. Ambos foram fortemente
influenciados na sua prática artística pelos ex-votos.
Frida Kahlo, Sin
esperanza, óleo sobre tela, 28 x 36 cm, 1945.
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Diego Rivera, En el Arsenal, óleo sobre tela, 433 x
400 cm, 1927
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A dimensão popular, no seu cariz narrativo e na sua
ingenuidade representativa, foi recuperada por estes dois pintores mexicanos
nas suas próprias pinturas.
Outras formas de apropriação do imaginário ligado aos
ex-votos podem ser exemplificadas em composições do artista contemporâneo Keith
Anden Achepohl (Chicago, Illinois 1934), também ele um grande colecionador
destes objetos, que começou a recolher no sul de Itália há mais de 40 anos
atrás. No caso de Achepohl, os ex-votos que mais o influenciam são os gravados
em folha-de-flandres. O artista diz-se fascinado pelo significado que estes
objetos representaram na vida das pessoas e refere o respeito face a tais peças
que permitiram transmitir emoções pessoais tão poderosas que levam a suspender
a razão em prol da fé cega.[1] Em
relação ao conjunto de pinturas e desenhos que Achepohl fez tendo como
referência o universo dos ex-votos, ele diz que sentiu tratar-se mais de uma
forma de contar histórias, do que de criar arte.[2] A
dimensão narrativa e o cariz popular dos ex-votos revela-se fundamental
para Achepohl.
Keith Achepohl, Untitled 18, mixed media on handmade Venetian paper, 13.5 x 17 in., 2011-2013 |
Keith Achepohl, Untitled 20, mixed media on handmade Venetian paper, 13.5 x 17 in., 2011-2013 |
No campo da imagem fotográfica, há vários exemplos
contemporâneos com pertinência nesta abordagem aos ex-votos. Veja-se o caso de Tom Chambers, cuja obra fotográfica
comtempla uma interessante série dedicada ao tema. Para as suas fotos, Chambers
foi inspirado pelos ex-votos mexicanos, deles recuperando a ambiência misteriosa
e a ilustração narrativa de eventos dramáticos ou de claro risco. Não há
qualquer intenção documental por trás da sua obra, que por vezes parece mesclar
nas suas composições elementos surrealistas (descontextualização, nonsense) com elementos barrocos
(iluminação, teatralidade), tendo sempre por fundo a atmosfera narrativa e a
pungência enigmática dos ex-votos.
Tom Chambers, Aground,
foto, serie Ex-votos, 2003.
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Tom Chambers, Pueblo
fire, foto, serie Ex-votos, 2003.
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Tom Chambers, They
comfort, foto, serie Ex-votos, 2003.
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Em termos escultóricos são também muitas as apropriações que
a arte contemporânea tem feito destes objetos. O artista suíço Urs Lüthi tem vindo a desenvolver desde
2005 uma série de esculturas precisamente intituladas Ex-votos, que remetem
para a vertente anatómica deste objetos votivos e para o intuito de celebração
vital que os motiva. A obra de Lüthi vive do “dar forma à emoção” e de uma
certa ironia que transporta para a arte, fazendo da sua prática como que a
vertente mais valiosa da vida quotidiana, ao mesmo tempo que relativiza a
importância da dimensão existencial desse quotidiano. A vida está mais do lado
da arte do que do lado da própria existência quotidiana. O interesse de Lüthi pelos
ex-votos parece igualmente radicar nessa vertente mais apaziguante e
satisfatória de entrega pessoal a uma dimensão oculta e só acessível pelo
elemento intercessor, religioso, na verdadeira aceção do termo re-ligare. Os seus objetos escultóricos,
tal como os objetos votivos, testemunham essa entrega a uma dimensão mais viva
e poderosa do que a própria existência quotidiana a que se referem. A simplicidade
das formas e uma certa ambiência hospitalar fazem com que se lhes associe uma certa
pureza que anda de mãos dadas com um certo desconforto e sensação de incerteza.
Domina a ambiguidade entre a dimensão vital e o risco da iminência da morte.
Urs Lüthi, Ex voto I-V – Instalação na Galerie Lelong, Paris, 2008.
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Urs Lüthi, Ex voto,
vitrine, vidro, 202x91x91cm, 2012.
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Urs Lüthi, Ex voto,
detalhe da instalação no ateliê do artista, 2008.
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Christie
Brown é uma escultora cujo trabalho encontra igual referência nos
ex-votos, quanto à sua dimensão antropomórfica e quanto à serialidade
resultante dos conjuntos expostos nas paredes dos santuários. A inspiração
formal e estrutural tem por fundo os objetos votivos de Itália e do Brasil. Por
trás da exploração formal, há todo um desenvolvimento concetual com base numa
perspetiva arqueológica psicologista, que culmina na temática da cura e da
crença. Os objetos escultóricos que compõem as instalações de Brown parecem,
com efeito, saídos de escavações arqueológicas e eles próprios, na repetição
das formas, invocam uma sobreposição de memórias, aspirações, medos, etc. Essa
invocação das múltiplas camadas que constituem a nossa dimensão psicológica faz
com que, ao sermos confrontados com elas, possamos dar também início a um
processo de cura ou minimização da dor. Trata-se de um apelo à instrospeção e
ao potencial da crença, não propriamente relacionada com o esoterismo, mas com
a nossa capacidade de estabelecer conexões significantes entre diversas partes
que por vezes se autonomizam em demasiado, causando rupturas ou zonas muradas
dentro da nossa vivência emotiva. A questão religiosa é então resumida à
dimensão psicológica pessoal, na qual a crença é um dispositivo de abertura à
coexistência harmoniosa e simbiótica de esferas emocionais que estavam antes
recalcadas ou isoladas por outras camadas mais preponderantes, ou mais
recentes.
Christie Brown, Resource,
instalação (barro), 1998-9.
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Christie Brown, Ex-Votos,
barro, 2003-200.
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Também para muitas das suas obras, o processo criativo de
Aninha Duarte tem por base uma aturada e minuciosa pesquisa em torno dos
ex-votos, dos quais recuperou a linguagem simbólica. Ao estudar a iconografia
votiva, não apenas na dimensão mais manifesta da sua imagética, mas também na
dimensão cultural e psicológica que lhe subjaz, Aninha Duarte tem contemplado
uma dimensão etnográfica no seu processo criativo que acompanha de modo
impartível todo o desenvolvimento plástico. A atenção às formas, aos materiais
e à dimensão serial patenteia o paralelismo entre o substrato emocional que igualmente
recupera para as suas obras a partir dos ex-votos, e um forte cariz documental.
A temática da memória pessoal, histórica e cultural, está presente nestas suas
apropriações do objecto religioso votivo, ele próprio atinente à estrutura
mnésica veiculada pela dimensão narrativa e ao apelo a que não seja obliterada a
agraciação concedida, através da dimensão consagratória pública na qual radica
tal prática.
Aninha Duarte, Ex-votos e Poiésis, instalação, 300 x 160 cm,
2001.
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Aninha Duarte, Combinações (detalhe), Série de10 caixas, 20 x 13 x 8 cm,
2006.
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Aninha Duarte, Descansem em Paz (detalhe), pintura sobre tecido, pigmento/
vinil, 460cmx 140cm, 2013.
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Embora haja muitos mais exemplos que poderiam ser aqui analisados,
findamos com uma instalação em prata de Nynke
Deinema. Esta artista holandesa pretende chamar a atenção para uma
certa desumanização nos cuidados médicos. A crescente tecnologização deste
setor tem vindo a ser acompanhada por um refrear do apoio mais personalizado e
baseado na dimensão afetiva. A ajuda prestada pelas mãos dos médicos e
enfermeiros que estavam à cabeceira dos doentes parece estar a ser substituída
pela fria monitorização das máquinas. A necessidade do regresso a uma relação
mais gratificante e eficaz do ponto de vista psicológico, é portanto o fator de
recuperação do universo votivo nesta instalação de Nynke Deinema. O próprio
título em latim Do ut des significa
“Dou de modo a que me dês” e refere-se à prática dos ex-votos na gratuitidade
da dádiva, como troca de valor afetivo, sendo que dela também é criativamente
citado o aspecto formal. A artista serve-se de moldes em gesso de orgãos e
partes anatómicas, que depois passa para formato digital e imprime a 3D em
tamanhos bastante maiores que os dos moldes originais. O objeto final é
trabalhado em prata, material que na antiguidade tinha grande aplicação
medicinal. Uma orelha em grande formato, uma mão, diversos órgãos internos e outros
detalhes anatómicos compõem esta instalação.
Nynke
Deinema, Do ut des, instalação,
cerâmica e prata, 50 x 100 x 15 cm, 2013.
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A arte
contemporânea tem-se reapropriado dos ex-votos através de técnicas e expressões
muito díspares, culminando em obras que podem, ou não, ir de encontro ao
substrato religioso que está na base da prática votiva. Os processos
criativos que recuperam para si características do universo religioso, fazendo
o translado de elementos formais ou conceptuais desse contexto religioso para o
contexto artístico, não estão presos a amarras de natureza ética relativas ao
contexto religioso – o que não significa que seja aceitável que possam fazer
tábua rasa de pressupostos éticos mais gerais – e beneficiam de uma liberdade
bastante ampla, que inclusivamente poderá contemplar a crítica desse mesmo
universo religioso que citam. Não há uma necessária coincidência entre os
princípios que enformam a concetualidade criativa e as premissas religiosas
sobre as quais opera tal processo criativo. O mesmo não deverá ocorrer nos casos
em que a obra de arte é especificamente feita para um espaço ou contexto
religioso (como ocorre nos anteriores exemplos apresentado neste blog no
corrente mês) e cuja referencialidade deve respeitar os princípios que subjazem
ao universo teologal em questão, independentemente do artista ser ou não crente.
Nos diversos exemplos que analisámos em relação às práticas
artísticas que de algum modo se deixam inspirar pelos ex-votos, é possível
constatar que, apesar de beneficiarem de ampla liberdade criativa, a intenção
referencial dos artistas parece sobretudo centrar-se numa espécie de celebração
da vida, dos elementos que concorrem para a sua agraciação e preservação, bem
como na importância da sua dimensão afetiva. Tais focos estão de acordo com os
valores religiosos subjacentes à prática votiva.
A obra de muitos outros artistas poderia aqui ter sido tomada
como exemplo da apropriação criativa dos ex-votos, mas o constrangimento dimensional
do texto levou-me a esta seleção que considero ser paradigmática dos diversos
modos que pode assumir tal apropriação. Resta-me deixar como tópica aberta à
reflexão o facto de haver uma espécie de mise-en-abîme
característica destas práticas artísticas que se deixam nutrir pela visualidade
e conceptualidade peculiar de um objecto religioso, ele mesmo fruto de um
processo que, não obstante ser considerado do domínio da arte popular, vive também
do jogo criativo entre uma linguagem visual muito própria e uma profundidade
simbólica que reflete e que apela a estados emotivos específicos. Não deixa,
portanto, de haver uma certa circularidade nestes processos de criação artística
coontemporânea que citam os ex-votos, eles próprios fruto de um processo
criativo de natureza distinta.
Ana Rita Ferreira
NUPPE/CFUL
[1]
“I’ve always been fascinated by what these have meant in people’s lives.
Throughout history who has not made a wish or communicated a private aching
need or tender longing to a higher power? I have a profound respect for any
object that allows a person to convey a personal emotion so powerful as to give
over or suspend reason for blind faith.” Keith Achepohl na nota de imprensa
para a exposição If It Please You Lord, no
Hallie Ford Museum of Art (Oregon). http://willamette.edu/arts/hfma/about/news/media/2013-2014/keith_achepohl.html
[2]
Achepohl em entrevista conduzida por April Baer para o programa de rádio State of Wonder da Oregon Public
Broadcasting, em 5 de Abril de 2014. Disponível em podcast pelo seguinte link: http://www.opb.org/radio/programs/state-of-wonder/article/icons-of-gratitude-keith-achepohls-ex-votos/?t=37617
Vários ex-votos
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